Texto
de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.
“"Vocês são idólatras! Pois Deus proíbe que
sejam feitas imagens. Está escrito...". E por aí vai. Raros são os
católicos que nunca ouviram, ou leram, algo parecido vindo de protestantes; e,
lamentavelmente, não são raros aqueles que se deixam incomodar por esse tipo de
palavrório. O ódio às imagens, todavia, não é recente. Se olhamos para a
História da Igreja, vemos que já nos séculos VII-VIII se ergueram os
quebradores das imagens, os iconoclastas, que sucumbiram sob a verdadeira fé.
Nos tempos modernos, levantando a mesma bandeira de guerra contra as imagens,
os protestantes intentam apenas reviver das cinzas a iconoclastia, recorrendo,
para tanto, às Escrituras, ainda que de modo superficial.
E o que dizem, quando querem acusar a Igreja
Católica de idolatria? Antes de tudo, o refrão: "Está escrito...". E
o que está escrito?
"Não terás outros deuses além de mim. Não
farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em cima dos
céus ou debaixo da terra. Não te prostrarás diante dos ídolos, nem lhes
prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento" (Ex 20,
3-5a).
Pois bem, a Igreja Católica é fidelíssima ao
primeiro mandamento, fidelíssima a esse trecho do livro do Êxodo que só pode
ser entendido plenamente dentro de toda a Sagrada Escritura. Pois "também
está escrito":
"Farás dois querubins de ouro polido nas duas
extremidades do propiciatório: um de cada lado, de modo que os querubins
estejam nos dois extremos do propiciatório" (Ex 25, 18-19. 37, 7).
"'Faze uma serpente venenosa e coloca-a sobre
uma haste. Aquele que for mordido, mas olhar para ela ficará com vida'. Moisés
fez, pois, uma serpente de bronze e colocou-a sobre um poste" (Nm 21,
8-9).
"O altar do incenso devia conter certo peso de
ouro refinado. O projeto também descrevia o carro dos querubins de ouro, que
com as asas estendidas cobrem a arca da aliança do Senhor. Davi declarou: 'tudo
isso me chegou num escrito da mão do Senhor'" (1 Cr 28, 18-19).
"No santíssimo, Salomão mandou instalar dois
querubins de madeira de oliveira de dez côvados de altura [...]. Salomão
revestiu os querubins de ouro. Mandou também esculpir, nas paredes em redor do
templo, figuras variadas: querubins, palmas, cálices de flores [...]" (1
Rs 6, 23-38).
"Dentro e fora do Templo, em volta de todas as
paredes internas e externas, tudo estava coberto de figuras, querubins e
palmeiras" (Ez 41, 17-18).
"Estavam aí o altar de ouro para o incenso e a
arca da aliança, toda recoberta de ouro, na qual se encontrava uma urna de ouro
que continha o maná, o bastão de Aarão que tinha florescido, e as tábuas da
aliança. Sobre a arca estavam os querubins da Glória, que com sua sombra
cobriam a bandeja para o sangue da expiação" (Hb 9, 4-5).
E
agora? Primeiro, Deus ordena não fazer imagens e, depois, ordena fazê-las. O
que acontece? O problema é que Deus se contradiz ou que nós não O entendemos?
Não podemos furtar-nos dessa questão.
Indubitavelmente,
Deus não se contradiz – senão seria apenas mais um 'deusinho', "feito por
mãos humanas" (Sl 113, 4), e não o verdadeiro Deus. O problema tem seu
início quando a Bíblia é lida por meio de versículos isolados, sem a necessária
unidade de toda a Escritura [1], e quando sua interpretação é submetida
inteiramente ao leitor, posto como 'autoridade máxima' do exame bíblico. Tal
problema é tão infesto que a própria Sagrada Escritura o denuncia. O episódio
da tentação de Jesus no deserto, por exemplo, torna claro como é possível
adulterar a palavra de Deus, dando-lhe uma interpretação completamente
equivocada: o demônio abriu a Escritura e citou-a para tentar Jesus (cf. Mt 4,
6; Lc 4, 9-10). "Está escrito...", disse [2].
De
fato, o uso da Sagrada Escritura para justificar as próprias ideias e interesses,
mutilando-a e adulterando-a, gera sérias consequências e tem sido cada vez mais
frequente. Lembremo-nos de Lutero – outrora monge católico – e seus seguidores.
Esses mutilaram o cânon bíblico, retirando diversos livros de 'suas bíblias', e
disseram o sola scriptura. Ora, foi da Escritura que retiraram tal lema e a
lista dos livros que lá não deveriam permanecer? Desde a tentação de Jesus no
deserto, passando por todas as heresias da História da Igreja até os nossos
dias, más intenções, mutilações e ignorância bíblicas têm nos acompanhado,
fazendo a palavra de Deus 'padecer' uma verdadeira paixão em seu 'corpo'
dilacerado pelas más interpretações.
Quanto
à perícope do livro do Êxodo (20, 3-5a) e outras sobre as imagens, a proibição
refere-se aos ídolos e, portanto, às imagens dos ídolos. Um ídolo é uma figura
representativa de um deus falso, comum entre os povos pagãos. Diz o salmista:
"Os ídolos das nações são prata e ouro, feitos por mãos humanas; têm boca
e não falam, têm olhos e não veem, têm ouvidos e não ouvem, têm nariz e não
cheiram. Têm mãos e não palpam, têm pés e não andam; da garganta não emitem
sons" (Sl 113, 4-8).
Quando
Deus diz: "Não farás para ti imagem esculpida", a palavra utilizada
para "imagem" é temunah (תְּמוּנָה), empregada justamente para falar
dos ídolos, dos deuses pagãos, tanto que, na famosa versão dos Setenta –
tradução do hebraico para a língua grega, feita nos séc. III-II a.C. –, a
palavra é traduzida por eidolon (εἴδωλον), ídolo, com acepção muito diversa da
palavra eikon (εἰκών), ícone.
Ou
seja, "o primeiro mandamento condena o politeísmo. Exige do homem que não
acredite em outros deuses além de Deus, que não venere outras divindades além
da única" [3]. Ensina, ademais, o Catecismo: "A idolatria não diz
respeito apenas aos falsos cultos do paganismo. Continua a ser uma tentação
constante para a fé. Ela consiste em divinizar o que não é Deus. Há idolatria
desde o momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de
Deus" [4]. Atenção para as palavras: "uma criatura em lugar de
Deus"! Ainda sobre o primeiro mandamento, Santo Tomás de Aquino comenta:
"'Não terás outros deuses diante de mim'. Para
compreendê-lo é preciso dizer que os antigos de muitos modos transgrediam este
Mandamento. Alguns, com efeito, prestavam culto aos demônios: 'Todos os deuses
dos povos são demônios' (Sl 95,5). Este é o maior de todos os pecados, é
horrível. Ainda hoje muitos transgridem esse Mandamento ao dar ouvidos aos
adivinhos e sortilégios. Santo Agostinho ensinava que tais coisas não se fazem
sem que se contraia algum pacto com o demônio: 'Não quero que vós tenhais
sociedade com os demônios' (1Cor 10, 20) [...]. Outros cultuavam os corpos
celestes, julgando serem deuses os astros [...]. Outros cultuavam os elementos
inferiores: 'Tomaram o fogo, ou o vento (...) por deuses' (Sab 13, 2). Os
homens que usam mal as coisas inferiores, amando-as excessivamente, caem no
mesmo erro. Diz o Apóstolo: 'O avaro, o qual é um idólatra' (Ef 5, 5). Outros
erravam cultuando homens, aves ou outros animais, ou a si mesmos [...]"
[5].
Se
queremos, portanto, entender o sentido real do primeiro mandamento, escutemos o
Senhor – Aquele que é maior do que Moisés (Hb 3, 3) –, quando testado por um
doutor da Lei: "O primeiro mandamento é este: 'Ouve, Israel! O Senhor
nosso Deus é um só. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda
a tua alma, com todo o teu entendimento e com toda a tua força'" (Mc 12,
29-30; Mt 22, 37-38). Como se vê, o Senhor não faz referência alguma a imagens!
Porém, a idolatria é claramente condenada, pois, com o dever de amarmos a Deus
acima de tudo e com totalidade, sendo Deus um só, proíbem-se os ídolos, e as
imagens enquanto ídolos. Não se trata, desse modo, de proibição sobre qualquer
espécie de escultura, de pintura, de desenho etc., caso contrário a arte como
um todo estaria proibida, além de fotografias e objetos de decoração.
Por
conseguinte, para a Igreja Católica, as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo,
de Sua Santíssima Mãe, dos Santos Anjos e dos Santos, não são ídolos e "o
culto cristão das imagens não é contrário ao primeiro mandamento, que proíbe os
ídolos. Com efeito, 'a honra prestada a uma imagem remonta ao modelo original'
e 'quem venera uma imagem venera nela a pessoa representada'. A honra prestada
às santas imagens é uma 'veneração respeitosa', e não uma adoração, que só a
Deus se deve" [6]. Uma carta escrita entre os anos de 726 e 730 d.C. ao
ímpio Leão III, imperador iconoclasta, é resposta acertadíssima também aos
iconoclastas modernos:
"E dizes que nós adoramos pedras, paredes e
painéis de madeira. Não é assim como dizes, ó Imperador, mas para nossa memória
e nosso estímulo, e para que nossa mente lerda e fraca seja dirigida para o
alto por meio daqueles aos quais se referem esses nomes, invocações e imagens;
e não como se fossem deuses, como tu dizes – longe de nós! De fato, não pomos
nossa esperança nesses 'objetos'. E se é uma imagem do Senhor, dizemos: Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus, socorre-nos e salva-nos. Se é da sua santa Mãe,
dizemos: Santa mãe de Deus, mãe do Senhor, intercede junto ao teu Filho, nosso
verdadeiro Deus, para a salvação das nossas almas! Se é do mártir, dizemos: Ó
santo Estêvão, protomártir, tu que derramaste o sangue pelo Cristo, com tua
liberdade de falar, intercede por nós! E para qualquer mártir que venceu o
martírio, assim dizemos, elevamos semelhantes orações por meio deles. E não é
verdade que chamamos os mártires de deuses, como dizes, ó Imperador" [7].
Infelizmente,
muitos continuarão com uma impiedade desenfreada e tagarelando incompreensões.
Deveras, muito mais seria necessário dizer sobre os abusos na interpretação da
Sagrada Escritura e as acusações injustificadas feitas à Igreja Católica,
provenientes em primeiro lugar da ignorância e, quem sabe, da má intenção;
porém, é certo que quem não quer ouvir, não ouve. Que o Senhor tenha piedade de
todos nós.
A
Sagrada Escritura foi escrita sob uma visão e sua interpretação deve ser feita
dentro da mesma visão, assim ensina um outro documento da Igreja, a Dei Verbum,
do Concílio Vaticano II. Ora, isso significa que a qualquer interpretação da
Bíblia feita fora do espírito no qual foi escrita pode causar um enorme dano.
São
Pedro já exortava sobre a necessidade de sintonia na leitura e interpretação da
Palavra de Deus em sua segunda Carta. Ele disse:
Pois
deveis saber, antes de tudo, que nenhuma profecia da Escritura é objeto de
explicação pessoal, visto que jamais uma profecia foi proferida por vontade
humana. Ao contrário, foi sob o impulso do Espírito Santo que pessoas humanas
falaram da parte de Deus. (2Pe 1,20-21)
Logo,
os textos da Bíblia devem ser interpretados em sintonia com a Igreja. Somente
sendo Igreja é possível compreendê-la. Este é o critério para a leitura e
interpretação da Sagrada Escritura: estar em comunhão com a Tradição, com o
Magistério, com o corpo eclesial. Qualquer coisa fora disso é pessoal.”
Por que não somos idólatras?. Disponível em: < https://padrepauloricardo.org/blog/por-que-nao-somos-idolatras> . Acesso em: 30/03/2018.
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